Ania Cavalcante, doutora em História pela
USP com especialização pelo Yad Vashem de Israel
Via Jornal Alef
27 de janeiro foi o dia consagrado internacionalmente, por 80 países, como o “Dia em Memória das Vítimas do Holocausto”. Em 27 de janeiro de 1945, o Exército soviético libertou o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, o maior centro de assassinato do regime nazista, tornado símbolo do Holocausto. O Holocausto foi o processo não-linear de perseguição, exclusão sócio-econômica, expropriação, guetoização e extermínio por meio de fome, doenças, exaustão pelo trabalho, fuzilamentos em massa e gaseamento por monóxido de carbono e gás Zyklon B de judeus e outras vítimas dos nazistas e de seus colaboradores europeus, ocorrido de 1933 a 1945. O Holocausto vitimizou judeus e também outros grupos: opositores políticos, intelectuais, ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová, deficientes físicos e mentais. Foi um crime contra a Humanidade. Mas existe uma especificidade histórica do Holocausto: tratou-se de um crime planejado e calculado para assassinar todo o povo judeu de todo o mundo e da própria história, destruir completamente sua cultura, seus lugares e a memória, destruir parte da História, algo jamais ocorrido até então em nenhum outro genocídio ou crime contra a humanidade.
Neste dia 27 de janeiro, remembramos cada uma das vítimas do Holocausto e de Auschwitz Birkenau. Auschwitz era um complexo concentracionário que englobava o campo de concentração (Auschwitz Stammlager), o campo de trabalho forçado (Auschwitz Monowitz) e o campo de extermínio (Auschwitz Birkenau). Todos os campos de extermínio estavam localizados na Polônia, país onde 3 milhões de judeus foram assassinados, isto é, 90% dos judeus poloneses foi exterminado. Em Birkenau foram assassinados mais de uma milhão de pessoas, dentre as quais mais de 960 mil judeus, 75 mil poloneses, 21 mil roma e sinti (ciganos), 150 mil prisioneiros de guerra soviéticos e 150 mil pessoas de diversas nacionalidades. No auge do funcionamento de Auschwitz, mais de 6 mil judeus eram asfixiados por dia, e chegou-se a cremar 9.000 almas em um só dia. Durante o Holocausto, cidades inteiras, famílias inteiras pereceram, parte da nossa História foi levada às cinzas.
O Holocausto adquiriu um sentido profundo de ruptura e catástrofe na história da Humanidade pelo grau de degradação antes nunca visto na História. A degradação humana, no entanto, não terminou com a derrocada do nazismo. As conseqüências da barbárie permaneceram vivas na memória e no corpo dos sobreviventes, enquanto cicatrizes físicas e psicológicas irreparáveis.
É preciso entender o que foi o Holocausto, para remembrá-lo e as suas vítimas e evitar novos crimes, discriminação e intolerância. Atualmente o fenômeno do Holocausto é entendido como a destruição física de 6 milhões de judeus (que representavam 65% da população judaica européia da época e 30% da população judaica no mundo e, dentre os quais, 1,5 milhão eram crianças) e das milhares de outras vítimas não judias do Holocausto, e também um processo de destruição cultural e histórica.
Primeiro, os perpetradores foram alemães e europeus, foram os nazistas (que eram alemães) e os colaboradores do nazismo, portanto, os perpetradores foram europeus de muitas nacionalidades. Segundo, como mencionado, as vítimas do Holocausto foram judeus e outros grupos, e não somente judeus, embora os judeus tenham sofrido um tipo de perseguição e assassinato específico e aniquilador, e único até hoje na História, o que será tratado mais adiante. Last but not least, houve vítimas alemãs dos nazistas, porque as primeiras vítimas do nazismo foram alemães, que eram opositores políticos: social democratas, comunistas, anarquistas e sindicalistas, e também todos os grupos sociais que realizaram algum tipo de oposição àquele regime de terror e brutalidade, presos em campos de concentração já em março de 1933, ou seja, menos de três meses depois da ascensão de Hitler ao poder a 30 de janeiro de 1933. A estas vítimas foram se unindo outras: ciganos, testemunhas de Jeová, deficientes físicos e mentais, homosseuxuais, levados a campos desde 1936. .
Os judeus alemães (ou alemães judeus) foram vítimas desde 1933 de exclusão social, cultural e econômica, legislação antijudaica com as Leis de Nürenberg de 1935, humilhações, expropriação de bens e impulsionamento da emigração do país. Um divisor de águas importante na política antijudaica do nazismo foi a Kristallnacht (A Noite dos Cristiais Quebrados) a 9 de novembro de 1938, marco do início da violência massiva contra os judeus. E foi a partir da Kristallnacht que os judeus alemães foram pela primeira vez levados a campos de concentração: 30 mil foram levados a três campos de concentração já existentes na Alemanha nazista já existentes (Dachau, Sachsenhausen e Buchenwald). Alguns países europeus adotaram medidas legislativas antijudaicas e discriminaram os judeus, mas somente com a eclosão da Segunda Guerra Mundial há a perseguição e violência contra os judeus europeus e também contra outras vítimas de outras nacionalidades e grupos. Até 1939, mesmo muito difícil, os judeus alemães ainda tinham alguma oportunidade de emigrar da Alemanha, mas o mundo fechou as fronteiras aos refugiados judeus alemães e europeus e eles ficaram sem saída,. A situação foi bem explicada já em 1939 por Chaim Weizmann, presidente da Organização Sionista Mundial: para os judeus da Europa Central e Oriental “o mundo se dividiu em dois: lugares onde não podem viver, e lugares para onde não podem ingressar”.
A especificidade histórica do Holocausto consiste em que os nazistas e seus colaboradores chegaram a colocar em prática a tentativa – planificada, massificada e brutal – de extermínio de todos os judeus e do judaísmo no mundo inteiro, ou seja, de matar todo um povo e sua cultura, e também de definir quem era judeu. Mesmo aquelas pessoas que não mais se consideravam judias, porque seus avós ou pais haviam se convertido ao protestantismo ou catolicismo (religiões preponderantes na Alemanha) e, portanto, não seguiam a cultura nem religião judaica, foram perseguidas pelos nazistas como judeus, se tivessem “sangue judeu” (na proporção determinada pela ideologia nazista). O nazismo é exemplo de como o sangue ou a consangüinidade não definem uma identidade nem cultural, nem religiosa, de como preconceitos e ódio podem gerar ignorância e brutalidade generalizadas e de como práticas iniciadas em um país podem - com terror institucionalizado, silêncio e colaboração internacional - ampliar a barbárie.
Interesses econômicos e pesquisas também ampliaram contribuíram e ampliaram a dimensão do Holocausto. Pesquisas recentes do Yad Vashem de Jerusalém afirmam que 60% dos funcionários da SS tinham diploma universitário, a maioria nas áreas de Direito, o que faz refletir a respeito do conhecimento e do estudo. Como dizia Theodor Adorno, de nada adianta ter conhecimento, se não existe ética. Quando falamos de regime nazista e de seus colaboradores, falamos de desumanidade em todos sentidos: falamos de estudo para elaborar, a partir de veneno para pragas de plantação e insetos, um gás que mate seres humanos com mais “rapidez e eficácia” (Zyklon B); o conhecimento utilizado para construir câmaras de gás nos campos de extermínio, onde seres humanos – crianças, jovens, idosos, mulheres, homens, famílias inteiras, seriam assassinados por asfixia; falamos de conhecimento e concorrência empresarial para construir fornos crematórios, onde as vítimas de campos de concentração, de trabalho forçado e de extermínio, onde as vítimas mortas de exaustão, fome, doenças ou brutalmente assassinadas, teriam seus corpos cremados, quando estas mesmas têm em seus valores que devem ser enterradas, com um ritual de respeito, de orações, visitadas anualmente, e não “sepultadas no céu”, segundo o poeta Paul Celan. Brutalidade em vida e depois da morte. E de trauma de sobreviventes, cujas seqüelas permaneceram para sempre no corpo e na memória, muito depois de terminado o nazismo, para sempre. São, portanto, mais que sobreviventes.
Apesar de tudo o que sabemos hoje em dia, do que as gerações anteriores viveram, ainda há o perigo de ocorrer outro Holocausto, corremos riscos, nós judeus e também os não judeus. Lastimável, mas esse risco existe. Vivemos um momento de genocídios em curso, de desrespeito a direitos humanos e de crescimento de xenofobia, racismo, de antissemitismo no mundo inteiro. Um momento em que governantes negam o Holocausto, que é o crime mais documentado da História, num momento em que o regime desse mesmo governante discrimina, persegue, aprisiona, tortura e assassina minorias religiosas e opositores políticas, imputa a pena de morte a homossexuais. Refiro-me ao governo do Irã, onde no último mês o regime executou 80 seres humanos. O Irã é atualmente um dos países que mais viola direitos humanos no mundo, prega uma política de ódio e um antissemitismo exterminatório, mas que também ameaça outras etnias, grupos religiosos e culturas inteiras. O povo iraniano tem lutado por democracia e respeito aos direitos humanos em seu país, em um movimento internacionalmente conhecido, mas as execuções continuam. O governo iraniano nega o Holocausto, pretende a destruição do Estado de Israel, utiliza muitos recursos para a guerra e militarização, financia organizações terroristas como Hamas e Hizbollah. É a primeira vez na história, desde o nazismo, que um país adota como política de Estado - e o declara abertamente - o extermínio de um país (Israel) e a continuidade do Holocausto. Trata-se, além disso, de um regime ditatorial que prega o ódio exterminatório contra judeus, e também contra todos aqueles que não se encaixam na sociedade preconizada por este Estado. A Negação do Holocausto é uma forma extremada de antissemitismo. Ao negar Auschwitz ou considerá-lo um “mito”, se está implicitamente considerando os judeus como inimigos do mundo ou concordando com o crime dos nazistas e de seus colaboradores. E as idéias de governantes iranianos encontram solo fértil no mundo islâmico extremista, onde Hitler ainda permanece sendo admirado, justamente por ter matado judeus, e o Holocausto é negado e ao mesmo tempo celebrado por estes. O perigo da Negação do Holocausto contém em si o apelo para que este se repita. Eis o grande perigo.
Por isso, é sempre fundamental recordar as vítimas do Holocausto, esse crime contra a Humanidade que serve de exemplo de que devemos estar sempre atuantes no mundo em que vivemos. Fundamental também recordar a coragem e dignidade de outros regimes e pessoas. Durante o nazismo, um país inteiro, a Dinamarca – governantes e população civil – esteve unido para salvar todos os judeus de seus país, em uma arriscada e corajoda ação coletiva de salvamento através de embarcações de todo o tipo para a Suécia, país neutral. Houve também quem arriscasse corajosamente a própria vida em nome do Outro – o Outro ser humano perseguido. E todos aqueles que salvaram uma vida ou muitas vidas – os Justos entre as Nações - devem ser homenageados hoje e sempre. Às vítimas do Holocausto e aos que salvaram vidas em meio à barbárie generalizada, nossa homenagem. Nossa lembrança, nossa profunda admiração.
O Holocausto é um dos capítulos mais sombrios da história, que deve sempre ser relembrada, respeitada, transmitida à minha geração e às próximas gerações. Cada vítima do Holocausto tem nome, uma memória, uma história. Quem respeita e salva a memória, pode salvar o mundo, mas quem o faz unido a muitos outros, pode realmente preservar a dignidade humana de todos e a Humanidade. É em nome de todas as vítimas do Holocausto e de todas as atuais vítimas de quem nega a História, de quem nega a memória, os crimes, e nega à vida, a liberdade, a paz ao mundo, um futuro para as novas gerações. E em nome dessas vítimas – e por elas –, que escrevo hoje e sempre.
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