quinta-feira, 14 de maio de 2009

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domingo, 10 de maio de 2009

CONTINUAÇÃO -

Conheci meu amor há quase três anos, pouco depois de chegar à Índia. Queria ter mais contato com jornalistas locais porque vim com a missão de escrever sobre o país em jornais brasileiros. Eles poderiam me dar boas dicas, informações e sugestões de reportagens. Uma amiga brasileira me deu o contato de um editor do maior jornal do país. Liguei para ele e combinamos de tomar um café. Foi paixão à primeira vista. Logo que começamos a conversar, percebemos que tínhamos coisas em comum: posições políticas, disposição para viagens, os mesmos gostos para livros e filmes, enfim, uma formação cultural próxima, apesar da distância dos nossos países. Quando ele me contou que uma das suas especialidades era a cobertura do Dalai Lama, fiquei extasiada. Sempre simpatizei com o budismo e esse era justamente um dos motivos pelos quais fui para a Índia. Ele me deu vários contatos para futuras matérias e prometeu ajudar no que precisasse.

Mas, logo nesse primeiro encontro, vivi uma saia justa cultural, por causa do sistema de castas. Um pouco antes de ir embora, ele me deu um livro explicativo sobre o assunto escrito por um 'dalit' (termo que significa oprimidos, os indianos que são chamados de intocáveis, situados no mais baixo patamar da pirâmide de castas do hinduísmo, geralmente voltados a trabalhos servis). Shobhan, esse é o nome do meu marido, ganhou mais um ponto positivo. Eu jamais conseguiria ser sequer amiga de alguém que apoiasse esse sistema que abomino. Nos despedimos à indiana: aperto de mãos, nada de beijinhos. Trocamos e-mails e combinamos de nos falar quando ele voltasse de uma viagem que faria à Inglaterra. Fui embora para casa repleta de curiosidade. Como todos os estrangeiros na Índia, queria saber como funcionava o sistema de castas. Também tinha vontade de descobrir à qual ele pertencia. Mas também sabia que pegava mal perguntar a casta de um indiano e resolvi não ser indelicada. Se fosse indiana, descobriria a origem dele pelo sobrenome. Mas Saxena, seu último nome, não me dizia nada.

Quando Shobhan voltou da viagem, escreveu-me. Se oferecia para me ajudar a conhecer a cidade. Aceitei. Fomos a um restaurante, conversamos sobre vários assuntos: o que estava acontecendo no mundo, na Índia. Percebi no olhar dele que tinha interesse por mim, mas ele sequer pegou na minha mão. Como a maioria dos indianos, Shobhan é tímido. Também percebi que não deveria dar o primeiro passo. Essa é uma tarefa dos homens. Nos despedimos com um aperto de mãos mais uma vez. Se fosse no Brasil, com certeza teria rolado uns beijinhos. Mas estava adorando aquela paquera. Combinamos de nos ver novamente.

A certeza de que ele estava interessado aumentava. Sempre estava disposto a me encontrar, inclusive nos sábados à noite. Íamos ao cinema, restaurantes, feiras de artesanato, exposições. Sempre como amigos. Ele me perguntava o que eu achava do país dele. Mas, eu não conseguia contar o choque. Só falava do lado positivo, que de fato existia: o privilégio de conhecer uma cultura milenar tão diferente da minha, poder escrever sobre um dos países que despontavam como potência emergente.

Eu sabia que na Índia as amizades entre homens e mulheres são raras. Shobhan era meu primeiro amigo em seis meses. Também estava ciente de que as mulheres ocidentais têm fama de 'fáceis' e não são muito respeitadas. Mas não dei a menor bola e não hesitei em continuar saindo com ele. Esse é um preconceito comum entre os homens do povo, que não é o caso de Shobhan. Ele é mais cabeça aberta do que a média dos indianos.

Depois de um mês nessa lenga-lenga, ele me convidou para passar alguns dias em um resort, em uma praia, perto de Mumbai. Disse que tinha chamado amigos e que faríamos um piquenique. Mas quando chegamos lá, ninguém apareceu. Ele escolheu um quarto com duas camas de solteiro para nós. Até hoje ele jura - sempre com um sorrisinho maldoso - que os colegas desistiram na última hora. Nos acomodamos, fomos tomar uma cervejinha e comer um peixe frito. Minha passagem de volta para o Brasil estava marcada e começamos a falar de planos. Ele me pediu para adiar a viagem. Queria me mostrar mais lugares na Índia, me levar para conhecer o Dalai. Foi seu jeito tímido de me pedir em namoro. Percebi que tudo aquilo estava sendo difícil para ele. Respondi que sim, mudaria a data do voo. Estávamos muito felizes.

Nosso primeiro beijo só aconteceu à noite, quando fomos para o quarto dormir juntos. Ele foi muito carinhoso, mexia no meu cabelo, passava a mão no meu rosto. Namorar na Índia é um exercício complicado. Os casais quase não se beijam em público sob o risco de serem presos por atentado ao pudor. Mesmo com o namoro oficializado, a gente só se beijava em casa ou em bares moderninhos.Não dormimos mais juntos durante semanas. Ele até me chamava para passar a noite na casa dele, mas percebia o desconforto na sua voz. Acho que fazia isso porque sabia que eu era ocidental. Na Índia, mesmo com uma população enorme, todo mundo comenta quando uma mulher dorme na casa de um homem com quem não é casada. Por isso, não ficava na casa de Shobhan nem de madrugada. Também não o convidava para dormir na minha. Ele ficaria constrangido.

Só consegui perguntar à qual casta ele pertencia depois de meses de namoro. Sua casta correspondia aos guerreiros, governantes, antigos reis. Mas ele, que sempre criticou o casteísmo, se converteu ao budismo como forma de protesto. O budismo não aceita a discriminação de castas.

Como todo bom indiano, Shobhan sempre me perguntava se casaria com ele. Achava que ele estava brincando e respondia, 'sim'. Minha passagem de volta para o Brasil tinha sido apenas adiada, mas ainda existia. Eu estava dividida. Ficava angustiada ao pensar que não ficaria mais com Shobhan, mas, imagine, sentia saudade até do conforto e da organização do trânsito de São Paulo, de falar a minha língua. Na Índia, os carros, motocicletas, motonetas e vacas ocupam as ruas sem nenhuma lógica. Não existem leis de trânsito, semáforos, muito menos contramão. Impera a lei do mais barulhento. Aqui, as pessoas buzinam para sinalizar que estão atrás de outro automóvel. Os ônibus e caminhões têm placas nas traseiras que dizem: 'Buzine, por favor'. É um aviso de que ele não pode dar ré a qualquer momento. Acho que o espelho retrovisor é um enfeite. E deve ser por isso que a meditação nasceu aqui!

Marquei minha passagem de volta. Dias depois, ele me fez uma surpresa. Disse que iria pedir a um monge budista tibetano para nos casar. Fiquei completamente estupefata. Disse sim na hora, mesmo com frio na barriga. Sabia que estava sendo impulsiva, mal o conhecia, mas tinha o pressentimento de que daria certo. Além do mais, a maioria das decisões importantes da minha vida tinha sido tomada dessa forma.

Contei para a minha família e amigos por e-mail a grande novidade e depois liguei para a minha mãe. Ninguém acreditava. Disse que estava apaixonada e todos me apoiaram na decisão. Lamentaram não poder ir à cerimônia. A família dele ficou muito feliz, mesmo eu sendo estrangeira. Afinal, ele iria cumprir a missão social mais importante da vida: casar. Sem ele saber, seus pais já haviam até colocado anúncios no jornal, na seção de classificados de casamento, divididos por castas, o que é comum por aqui, mesmo para os homens. Antes de me conhecer, ele já havia passado pela constrangedora situação de ir a vários encontros às escuras. O casamento arranjado ainda é a principal forma de união entre os indianos. O pagamento do dote - aquele que as sogras tanto adoram - também é comum. A gente brinca com esses hábitos arcaicos que ainda existem na Índia, um país que vive em vários séculos ao mesmo tempo. Felizmente, Shobhan vive no século 21.

Nos casamos duas semanas antes de eu voltar para o Brasil. A cerimônia budista foi simples e durou 40 minutos. Sentamos em almofadas diante da mesa do monge, que falou o tempo todo em tibetano. Não entendi nada. Depois Shobhan me disse que o sermão versava sobre Buda e seu significado. A ceia foi vegetariana, é claro. O cozinheiro era do Butão e preparou um menu delicado, bem menos apimentado que o indiano, com o qual meu estômago ainda não fez as pazes.

Depois de casada, tive a minha primeira experiência como patroa na Índia. Nunca tinha tido uma empregada doméstica, até porque não conseguia me comunicar com elas em híndi. Por essa experiência, descobri que o sistema de castas ainda está enraizado nas cidades. A moça fazia a faxina do apartamento, mas ignorava o banheiro. Quando perguntei a Shobhan por que ele não pedira a ela que limpasse também o banheiro, ele me olhou espantado, com um olhar que me fez sentir uma assassina: 'Você queria que eu pedisse isso a ela? Nunca, não poderia!'. E me explicou que a moça não pertencia à casta de limpar o banheiro. As famílias costumam ter vários empregados, um para cada tarefa.

Cinco meses depois do casamento nos mudamos para a capital, Nova Délhi, onde vivemos até hoje. É o centro dos correspondentes estrangeiros por ser a sede do governo central e das embaixadas. Shobhan pediu transferência dentro do mesmo jornal para me acompanhar. Em Délhi, o assédio dos homens é pior do que em Mumbai. Apesar de tímidos, eles são extremamente machistas. São mais agressivos e menos acostumados à presença das mulheres em ambientes dominados por homens. Não se veem muitas mulheres nas ruas, trabalhando em lojas, vendendo produtos. Tradicionalmente, a mulher ficava em casa e o homem saía para trabalhar. Eles dominam até os salões de cabeleireiros. Aqui, pedicures e manicures são homens.

Nova Délhi é uma das cidades com mais alto índice de estupro e agressões a mulheres na Índia. Os homens tentam dar passadinhas de mãos nas pernas e nos seios -uma obsessão dos indianos -, especialmente em ambientes com muita gente. Por isso, Shobhan queria me acompanhar na rua, pedia para eu não andar sozinha de rickshaw (aquele triciclo motorizado muito comum na Ásia). Casos de motoristas que levam mulheres para lugares ermos e as estupram são comuns. Levei várias passadas de mão até aprender que não se deve encarar os homens na rua, mesmo com cara feia. O ideal é desviar o olhar e proteger o peito cruzando os braços, principalmente em aglomerações. Hoje, ando com um spray de pimenta para jogar nos olhos dos eventuais agressores.

Alugamos um apartamento no terceiro andar com um imenso quintal de frente para um parque. É um lugar privilegiado. O único porém são as visitas inesperadas dos macacos. Shobhan sempre liga para me lembrar de não deixar a porta de casa aberta enquanto estou na espreguiçadeira do quintal pegando um solzinho: os macacos costumam entrar nas casas e roubar comida e objetos de valor, como celulares. Na minha, eles ainda não conseguiram furtar nada.

A família de Shobhan não foi ao nosso casamento. Sua irmã passou por uma cirurgia grave e de emergência no mesmo dia. Ficaram chateados, nos ligaram, pediram desculpas. Entendi a situação. Mas descobri depois que Shobhan estava magoado e não queria rece bê-los na nossa casa. Com essa demora em conhecer a família, já estava achando que eles não tinham me aceitado. O mito da sogra assassina só aumentava e até virou piada entre meus amigos e familiares.

Sete meses depois do casamento, os pais dele vieram nos visitar, quando a raiva já havia passado. Minha sogra me surpreendeu e foi muito doce. Me abraçava e me beijava muito, o que ela não faz nem com os filhos, porque na Índia eles só agem assim quando as crianças são bem pequenas. Apesar de não falar inglês, entende. Sorria enquanto eu falava. Meu sogro também foi educadíssimo, com um inglês maravilhoso, inteligente e bem informado. Foi um alívio. Tive que mandar um relatório imenso e detalhado para a minha mãe, que, no fundo, estava morrendo de medo de eu ter entrado em uma roubada.

Só depois de casada me senti à vontade para contar a ele sobre meu medo de andar de táxi. Logo que cheguei, uma ratazana resolveu subir no colo de um amigo dentro do táxi. Como fui perceber depois em vários episódios macabros, os indianos não costumam matar esses bichos para não ter carma ruim na próxima vida (nora pode, mas bicho...). Ou seja, não é só a vaca que tem vidão na Índia. Os ratos, baratas e aranhas que aparecem nas casas e dentro dos carros são apenas expulsos, sem danos a sua integridade física. Esse foi um capítulo à parte no meu casamento. No início da convivência a dois, Shobhan se recusava a matar baratas - que eu odeio com todo o coração. Mas, felizmente, o meu ódio prevaleceu e ele entendeu que as baratas não têm espaço na nossa vida. Nem nessa nem em outra encarnação: chinelo e spray nelas! (Só que tive que dar o braço a torcer quando uma bichinha se aproximou do meu pé durante uma entrevista do Dalai Lama. Estava na primeira fileira, pertinho do Dalai. Shobhan, do meu lado, viu meu pavor e me advertiu: se matasse a baratinha, perderia todas as fontes de informação budistas presentes, além da possibilidade de entrevistar o líder budista. Em nome do jornalismo, não matei, mas assoprei a bicha, que felizmente foi embora).

Não, não foi uma roubada. Nem o casamento, nem o marido, nem a sogra, nem o restante da família. Foi um grande presente que a Índia me deu. Mas morar aqui continua sendo um desafio, confesso. Quanto às ratazanas, já consigo até encará-las perto de mim, desde que não venham para o meu colo, é claro. Prefiro elas, as baratas, as aranhas e os macacos ladrões aos homens machistas e incovenientes de Délhi.'

Revista Marie Claire - Eu, leitora - nas bancas

sexta-feira, 1 de maio de 2009

DOIS EM CENA

FORA DO AR