Ubiratan Jorge Iorio
“O governo Lula interferiu nas carreiras de Estado de forma sistemática. Fez isso tantas vezes que ao longo de sete anos o país foi achando natural o que não se pode aceitar”.
A frase acima não é minha, nem tampouco de algum outro economista ou analista considerado “liberal” ou “conservador”. É da jornalista Miriam Leitão – que está longe de poder ser carimbada ou tachada com esses adjetivos ou outros semelhantes -, em sua coluna no jornal O Globo de 26 de agosto.
Comentando o que denomina de “rebelião na Receita Federal”, a conhecida jornalista econômica frisa corajosamente não tratar-se de um fato isolado, mas em autêntica marca do governo Lula, que é a confusão – deliberada, preciso adicionar – entre Estado e governo. E cita os casos calamitosos de aparelhamento, vale dizer, de invasões de hordas de “companheiros” e de sindicalistas, verificados no IPEA, no BNDES e no Itamaraty, aos quais acrescento os de Furnas (em que um dos diretores acaba de pedir demissão por ser contra o referido processo), da Polícia Federal, de certos órgãos do Judiciário, das agências reguladoras, da Petrobras, da Eletrobrás e, de um modo geral, das demais empresas estatais. Muito provavelmente, o mesmo vai ocorrer nas que o governo pretende criar, como a que vai cuidar do “pré-sal”, na contramão da racionalidade e do bom senso, que aconselham claramente, ao invés de mais uma estatal, o modelo de concessão com cobranças de royalties e participações especiais, por ser mais eficiente e dar menos margem à corrupção. Se Roberto Campos ainda estivesse entre nós, podemos imaginar o que diria ao saber que, além da Petrossauro, teremos agora a Petrosal-ro...
Só na Receita, até hoje, foram seis dezenas de pedidos de exoneração de altos postos; os jornais dão-nos conta do absurdo da existência de diversos “grupos” em guerra no seio do órgão, o de Lina Maria Vieira, o de Everardo Maciel, o de Jorge Rachid (todos ex-secretários) e o de Nelson Machado, secretário-geral do Ministério da Fazenda. Parece que apenas os contribuintes não contam com um “grupo” lá dentro...
No IPEA, que há meses realizou um concurso com critérios absurdos de seleção, o presidente Pochmann – aquele mesmo que, quando assumiu o posto conduzido pelo ininteligível Mangabeira Unger, declarou que o Estado no Brasil seria “mínimo” - acaba de divulgar um de seus “comunicados da presidência” que, entre uma e outra agressão à lógica econômica, sustenta que a produtividade do setor público cresceu mais do que a do setor privado, baseado em metodologia que simplesmente manda às favas qualquer consideração minimamente científica, para ajoelhar-se diante da ideologia do Estado-elefante, já que a atividade econômica privada tem o que contabilizar como produção, enquanto que no setor público esta é calculada pelo aumento dos salários e das despesas. Como escreveu Miriam Leitão, o outrora respeitado IPEA está comparando alhos com bugalhos. Em resposta à jornalista, o instituto, em novo “comunicado presidencial”, alegou que a metodologia utilizada para computar a produtividade é a mesma de outras instituições internacionais. Ora, isto, a rigor, não é uma defesa técnica, mas apenas um caso de transferência de responsabilidades, ridiculamente semelhante ao de um aluno que, tendo copiado a prova de outro e tendo recebido uma nota baixa, argumentou com o professor que a prova foi feita pelo colega e não por ele... É espantoso a que ponto esses ideólogos de meia tigela podem chegar!
No BNDES, no início do primeiro mandato de Lula, houve uma tentativa, sob a presidência de Carlos Lessa, de “lavagem cerebral esquerdizante” no quadro técnico, em que os economistas do banco, dos recém-concursados aos mais antigos, foram obrigados a frequentar um curso que tinha como objetivo principal transformá-los em fantoches heterodoxos (na linguagem deles, “desenvolvimentistas”) –, diga-se de passagem, da pior estirpe. Lembro-me bem das queixas, à época, de um colega da UERJ e também funcionário do BNDES, que possui o diploma de Doutor em Economia pela FGV assinado, nada mais nada menos, por Mario Henrique Simonsen, sobre o conteúdo ideológico do tal curso de “reciclagem” em Desenvolvimento Econômico que foi compelido a assistir como aluno.
No Itamaraty – e continuo relatando o que escreve a jornalista em O Globo – não tem sido diferente, a começar por aquela sinistra lista de livros obrigatórios, típica de ditaduras, e prosseguindo com a política de nomeações “seletivas” quando da promoção para postos importantes em países relevantes, em que o requisito básico para assumir as principais embaixadas passou a ser o da lealdade ao grupo que está ocupando o governo.
Poderia citar inúmeros outros casos, mas prefiro mencionar outra frase da jornalista: “O governo Lula ficará na história como o que mais aumentou o gasto de pessoal, o que mais contratou funcionários, e o que mais profundamente feriu a idéia de que os funcionários de carreira servem ao Estado e não a governos”.
Vou apenas acrescentar aquilo que os que têm um mínimo de bom senso já estão fartos de saber: que o aparelhamento do Estado pelo partido do presidente (e os de seus aliados) - vale dizer, pelo PT, pelo PMDB e por outras siglas que, embora menores, não o são em termos de oportunismo - é um processo muito perigoso para a democracia e, portanto, para o futuro do país, como também é perigoso e preocupante o Palácio do Planalto apagar fitas de visitantes, a Casa Civil confundir os compromissos da agenda da ministra, o governo – que já acossara um caseiro - perseguir uma ex-chefe de gabinete da ex-chefe da Receita e usar de todos os meios para impedir uma CPI para investigar denúncias de irregularidades na Petrobras, emitindo um sinal claro, para quem sabe entender, de que quem deve realmente tem motivos para temer, mesmo em um país em que as CPIs costumam acabar em festa e em que o Supremo, em mais uma decisão contrária à opinião pública, inocenta Palocci de haver quebrado o sigilo bancário do referido caseiro...
Quando eles vão parar? Até onde pretendem ir? O que realmente desejam? Essa gente desconhece, ou melhor, simula desconhecer, em sua ânsia de realizar o seu projeto de poder, que governo é uma coisa – passageira e conjuntural – e Estado é outra – permanente e estrutural! Seu modelo parece seguir de perto o de Chávez, Correa, Evo, Cristina, Fidel e outros representantes vivos de Matusalém... Partidos políticos não podem servir-se do Estado nem com o objetivo de implantar as suas ideologias e nem para prover de empregos os seus afiliados e aliados!
Uma das grandes tarefas com que se defrontará um governo realmente preocupado com os destinos do país que nosso despreparado e desinformado povo um belo dia haverá de eleger (sonhar não é, ainda, proibido) será exatamente a de separar Estado e governo, promovendo a profissionalização de toda a burocracia. É evidente que, em uma democracia, uma burocracia profissionalizada não significa que funcionários públicos não possam ter as suas doutrinas, ideologias ou preferências políticas ou partidárias particulares, mas sim que sejam impedidos de colocá-las a serviço de qualquer grupo político, esteja este no governo ou na oposição, utilizando-se para tal de suas funções públicas, que são sustentadas pelos contribuintes.
Alguém, algum dia no futuro, terá que proceder ao desmonte dessa apropriação do Estado pelo governo, uma tarefa tão necessária quanto penosa e que exigirá tempo. Com efeito, os “companheiros” e aliados inoculados no pobre Estado brasileiro pelo rico governo brasileiro sob o comando do semi-analfabeto e arrogante presidente brasileiro são tão numerosos que se assemelham à Hidra, aquele animal da mitologia grega que habitava o pântano de Amione, em Lerna, irmã de Cérbero, o cão do inferno, de Ortro, o canino monstruoso de Gerion e de Quimera, monstro com cabeça de leão, corpo de cabra, cauda de serpente e que vomitava chamas. A Hidra possuía corpo de dragão e inúmeras cabeças de serpente (segundo as várias versões do mito, 7, 8, 9 ou até 10), que tinham a propriedade de se regenerar (ou seja, eliminava-se uma e surgia pelo menos mais uma no lugar) e, para completar, hálito venenoso – um mortífero bafo de onça! -, sendo que uma delas era imortal, exatamente aquela que Hércules, segundo alguns, em um dos doze trabalhos, abateu com uma pedrada na cabeça, embora, para outros, o herói grego tenha destruído todas, para não crescerem novamente...
Como o Brasil está precisando de um Hércules - um presidente que seja de fato um estadista - para vencer a Super Hidra do aparelhamento partidário do Estado brasileiro! Por onde andará ele? Infelizmente, não está no Olimpo, que não existe, nem despacha de Brasília, que, embora seja também um lugar que possui muito de fantasioso, infelizmente, existe, está lá, bem lá, naquela planura seca e sem graça... Por enquanto, esse personagem de que tanto carecemos ainda não deu as caras e o arremedo dele que vem comandando o país desde 2003, embora também goste de gabar-se de “façanhas” e use a barba crescida, não é musculoso, tem o abdômen proeminente, está muito mais para tribufu do que para os padrões helênicos de beleza e é amigo íntimo da Hidra, que se compraz em alimentar e engordar para seu próprio proveito.
Inquieta-nos profundamente que, ao perscrutarmos o quadro eleitoral que se desenha para 2010, não consigamos vislumbrar ninguém que acredite na necessidade de separar Estado e governo, senão vejamos: Dilma será o aprofundamento do aparelhamento; Heloísa é do PSOL, o que dispensa comentários; Marina, tampouco; Ciro, idem, principalmente depois que andou frequentando cursos nos Estados Unidos ministrados pelo professor Unger; Christovam é visto como ético, mas isto é apenas uma condição necessária, porém não suficiente para modernizar o país; Serra, embora possa estancar o processo, dificilmente se disporá a revertê-lo com profundidade, porque sempre foi um economista e político de esquerda, inclusive para os padrões do PSDB, que, a rigor, é um partido de esquerda; a direita, incompetente como de hábito, parece ter mais uma vez vergonha para sequer ensaiar um candidato e não terá coragem para apresentar um; e os liberais e conservadores, simplesmente, não têm ânimo, nem organização, não conseguiram aglutinar-se até hoje e, consequentemente, não têm representatividade política significativa.
Dilma, Heloísa, Marina, Ciro, Christovam ou Serra? Esquerda PAC, esquerda pitbull, esquerda verde, esquerda desbocada, esquerda educada ou esquerda poodle (travestida de social-democracia), eis, mais uma vez, as opções do pobre eleitor brasileiro!
Que democracia é essa, Madonna mia?
quarta-feira, 2 de setembro de 2009
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